20 de dezembro de 2012

CARTA Número II-Odiado Cramulhão Encardido Junior


Odiado Cramulhão Encardido Junior,

Vejo, com muito desgosto que sua vítima tornou-se um cristão. Nem por
sonho alimente a esperança de que poderá escapar aos castigos normais; com
efeito, em seus melhores momentos, espero que você nem mesmo pense em tal
coisa. Enquanto isso é preciso que façamos o possível para remediar essa situação
tão indesejável. Não é necessário cairmos no desespero, conta-se por centenas
esses convertidos em idade adulta que foram reconquistados, depois de uma breve
estada nos arraiais do Inimigo e agora se encontram conosco. Todos os hábitos do
paciente, tanto intelectuais quanto físicos, estão ainda a nosso favor. Aliás, um
dos maiores aliados que temos hoje é a própria Igreja. Não me interprete mal. Não
me refiro à pestilenta Igreja que vemos difundida através dos séculos por toda
parte com suas raízes na Eternidade, terrível como um invencível exército com
suas bandeiras. ESSE espetáculo confesso que traz insegurança e inquietação aos
mais corajosos entre nós. Para nossa sorte, ESTA Igreja é inteiramente invisível
aos olhos humanos. Tudo que seu paciente pode contemplar é o prédio inacabado,
(pretendendo um estilo gótico) em seu bairro novo. Entrando ali, o paciente vê o
dono da quitanda local, com uma expressão de bem-aventurança no rosto, e que
se apressa em lhe oferecer um livrinho já bem gasto contendo uma liturgia que
ninguém consegue entender mais, e mais um outro livrinho caindo aos pedaços
que contem vários textos (corrompidos, por sinal) de poemas religiosos (a
maioria, péssimos) e ainda por cima, impressos em letra miúda (chego a pensar
que nós os escrevemos) de forma a dificultar ao máximo a leitura. Ao assentar-se
num dos bancos e olhar ao redor, o paciente vê justamente os vizinhos que até
então evitara. Você deverá acentuar bem na imaginação do paciente alguns
detalhes daqueles vizinhos. Faça com que sua mente fique a flutuar entre uma
expressão como o corpo de Cristo e os rostos concretos que ele pode ver nos
bancos próximos. Interessa muito pouco saber qual seja, na realidade, o tipo de
pessoas acomodadas naqueles outros bancos. Pode ser quer você saiba que um de
entre eles é ferrenho batalhador nas fileiras do Inimigo. Não há problema. Esse
paciente, graças a Nosso Pai lá de Baixo, não passa de um tolo. Contanto que
alguns dos seus vizinhos ali estejam cantando desafinados, ou usem sapatos
barulhentos, ou tenham dupla papada, ou estejam trajados com ternos antiquados,
o paciente poderá logo admitir muito facilmente que a religião de tais semelhantes
terá de ser, portanto, de certa forma, ridícula. No estágio em que ele se encontra,
compreender o conceito que faz dos cristãos lhe parece espiritual; na verdade, é
um conceito totalmente imaginário. Sua mente está cheia de togas e sandálias e
armaduras e pernas nuas (restos duma película situada no século I, de modo que,
o simples fato de que outras pessoas na igreja estejam a trajar roupas modernas
constitui-se numa real - embora seja isso inconsciente - dificuldade para ele.
Nunca deixe que essa dificuldade chegue à tona: nunca permita que ele inquira a
respeito de como esperava que esses cristãos fossem. Faça força por conservar
tudo confuso em sua mente agora, pois assim você terá em que distrair-se por toda
a eternidade, dando-lhe o tipo de esclarecimento que o Inferno oferece. Aproveite se
quanto possível, então, da decepção, ou do forte contraste que com certeza virá
ao paciente no decorrer das primeiras semanas de freqüência à igreja. O Inimigo
permite que o referido desapontamento ocorra na fase inicial de todos os esforços
dos seres humanos. Ocorre quando o adolescente que experimentara verdadeiros
enleios ao ouvir as histórias da Odisséia passa depois a estudar, com afinco, a
língua grega. Ocorre quando os noivos finalmente se casam e começam a real
tarefa de aprender a viver junto. Em todas as áreas da vida, esse desapontamento
assinala a transição necessária entre as aspirações sonhadas e a realização
trabalhosa. O Inimigo se expõe a esse risco porque acalenta a curiosa fantasia de
tornar esse nojento vermezinho humano a que Ele chama de seus livres amigos e
servos - filhos é a palavra que Ele emprega em sua preferência costumeira por
degradar todo o mundo espiritual mediante relações não naturais que estabelece
como animais bípedes humanos. À liberdade dos referidos animais Ele, por
conseqüência, recusa-se a atraí-los só pelas afeições e pela força de hábito a
qualquer dos objetivos que intente com eles. Ele os deixa "agir por si
mesmos" (não é incoerente?) Mas felizmente, nisto está uma ótima oportunidade
para nós (se aproveitada, claro). Como assim, você diria? Fácil: Se eles saem
destes apertos iniciais sem se "arranhar", se tornam mais independentes de suas
emoções, e com isso, fica muito mais difícil tentá-los. Até aqui, tenho escrito
longamente sempre imaginando que as pessoas sentadas nos demais bancos não
dão motivos específicos para o tal desapontamento. Com efeito, se derem motivos
- se o paciente souber que aquela mulher de chapéu esquisito é profundamente
viciada em jogos de azar, ou que o indivíduo dos sapatos barulhentos é avarento e
ganancioso - então seu trabalho como tentador fica muito mais fácil. Você só
precisa banir da mente da vítima esta linha de reflexão: "Se eu, sendo o que sou,
posso aceitar que até certo ponto sou um cristão, quem poderia distinguir os
vícios destas pessoas nos bancos aí ao lado e provar que a religião deles não passa
de hipocrisia e mero convencionalismo?". Você pode estar perguntando se é
possível evitar esse tipo de reflexão, mesmo se tratando de uma mente humana.
Saiba que é sim, Cramulhão, pode acreditar! Manipule-o corretamente e verá que
isto jamais lhe passará pela cabeça. Seu paciente não terá ainda tempo suficiente
de convivência com o Inimigo para aprender acerca da humildade real. O que diz,
mesmo quando de joelhos, sobre sua vida pecaminosa, é mera conversa de
papagaio. No fundo, ele ainda acha que no balanço da conta-corrente do Inimigo a
sua situação é mais favorável, pois ele consentiu em se deixar converter, e acha
uma extrema prova de humildade e desprendimento o fato de freqüentar a igreja
com essa "corja" de semelhantes medíocres. Faça tudo para mantê-lo o maior
Tempo possível neste estado de pensamento.

Seu afetuoso tio,
Diabão

Nota explicativa:

Há alguns anos, o conhecido autor evangélico C. S. Lewis, professor da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, escreveu uma série de artigos sob o título: "The Screwtape Letters" , ou seja, "Cartas do Inferno" , Edições Vida Nova SP, e os publicou no jornal "Guardian", conhecido órgão da imprensa britânica, lá pelos idos de 1940. Depois, essas cartas foram reunidas em um livro com o mesmo título, que se tornou a obra mais popular desse eminente escritor de temas cristãos. Nessas cartas, o autor imagina uma série de conselhos que Roldão, experiente oficial da hierarquia diabólica, envia a seu sobrinho Lusbim, um diabo neófito que recebeu a incumbência de corromper a fé de um homem que se tornara cristão. Visto que, daquela época para cá, tem-se multiplicado as artimanhas satânicas, é lícito imaginar mais alguns terríveis conselhos enviados pelo sinistro oficial ao seu infernal emissário, em plena ação diabólica para desviar os fiéis do caminho estreito. Usando os mesmos personagens, apenas mudamos os nomes, e tomando emprestado o gênero literário do autor mencionado, aqui apresentamos aos amados leitores uma nova carta imaginária, vinda dos abismos infernais.



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