26 de novembro de 2012

CARTA Número 1-Odiado Cramulhão

Odiado Cramulhão Encardido Junior,

Prestei bastante atenção no que você disse acerca de conduzir as leituras do
seu paciente, tomando cuidado para que ele assimile bastante daquele amigo
materialista. Mas você não está sendo um pouquinho ingênuo nesta tarefa?
Parece-me que você está se convencendo (não sei baseado em quê) que através da
argumentação você pode afastá-lo da influência do Inimigo. Isso até seria
aceitável, se seu paciente tivesse vivido alguns séculos atrás, pois naquele tempo
os humanos ainda sabiam distinguir quando uma coisa havia sido provada ou não.
E se tivesse sido, os homens a aceitavam e mudavam sua maneira de agir e de
pensar, somente seguindo uma corrente de raciocínio. No entanto, devido à
imprensa semanal e a armas semelhantes, alteramos bastante este contexto. Parta
do princípio que sua vítima já se acostumou desde criança a ter uma dúzia de
filosofias diferentes dançando em sua cabeça. Ele não usa o critério de
"VERDADEIRO" ou "FALSO" para conferir cada doutrina que lhe apareça (seja
do Inimigo ou nossa). Ao invés disso, ele verifica se a doutrina é "Acadêmica" ou
"Prática", "Antiquada" ou "Atual", " Aceitável" ou "Cruel". O jargão e a
expressão feita (e não o argumento lógico) são seus melhores aliados para mantêlo
longe da Igreja. Não perca tempo tentando levá-lo a concluir que o
Materialismo seja verdadeiro (sabemos que não é). Faça-o pensar que ele é Forte,
Violento ou Corajoso - ou ainda, que é a Filosofia do Futuro! Este é o tipo de
coisas que lhe despertarão a atenção. Percebo que você tem intenções produtivas,
mas há um problema muito grande quando tentamos persuadir o paciente a passar
para nosso lado pelo emprego de argumentos e lógica: isto conduz toda a luta para
o campo do Inimigo, que para azar nosso também sabe argumentar (e melhor do
que nós). Por outro lado, no que diz respeito à propaganda prática (ainda que
falsa) que lhe sugeri, Ele tem se mostrado por séculos bem inferior ao Nosso Pai
lá de Baixo. Pela pura argumentação, você despertará o raciocínio do paciente;
uma vez que a razão dele desperte, quem poderia prever o resultado? Veja que
perigo! Mesmo que uma cadeia de raciocínio lógico possa ser torcida de modo a
nos favorecer, isso tende a acostumar o paciente ao hábito fatal de questionar as
coisas, analisando as mesmas com visão geral, e desviando-se das experiências
ditas "concretas", que na verdade são apenas experiências sensíveis e imediatas.
Sua maior ocupação deve ser portanto a de prender a atenção da vítima de modo a
jamais se libertar da corrente do "Se eu vejo, creio!". Ensine-o chamar esta
corrente "Vida Real", e jamais deixe-o perguntar a si próprio o que significa
"Real". Lembre-se que ele não é puramente espírito como você. Nunca tendo sido
humano (E abominável a vantagem do Inimigo neste ponto) você não percebe o
quanto os humanos são escravizados à rotina. Uma vez, tive um paciente, ateu
convicto, que costumava fazer pesquisas no Museu Britânico. Um dia, estando ele
a ler, notei que seu pensamento esvoaçava com tendência a um caminho errado.
Com efeito, o Inimigo ali estava ao seu lado, naquele momento. Antes que desse
por mim, vi o meu trabalho de vinte anos começando a desmoronar. Se tivesse
entrado em pânico e tentado argumentar, eu estaria irremediavelmente perdido.
Mas não fui tolo a esse ponto! Recordei da parte da vítima que mais estava sob
meu controle e lembrei-lhe que estava na hora de almoçar. O Inimigo acho lhe fez
uma contra-sugestão (você bem sabe como é difícil acompanhar aquilo que Ele
lhes diz) de que a questão que lhe surgira na mente era mais importante do que o
alimento. Penso ter sido essa a técnica do Inimigo porque quando lhe disse
"Basta! Isto é algo muito importante para se meditar num final de manhã...", vi
que o paciente ficou satisfeito. Assim, arrisquei dizer: "E muito melhor se você
voltar ao assunto depois do almoço e estudar o problema com cabeça mais fresca.
Não havia acabado a frase e ele já estava no meio do caminho para a rua. Na rua,
a batalha estava ganha. Mostrei-lhe um jornaleiro gritando "Olha o Jornal da
Tarde", e o Ônibus No.73 que ia passando, e antes que ele tivesse dado muitos
passos, eu o tinha convencido de que sejam lá quais forem as idéias
extraordinárias que possam vir à mente de alguém trancado com seus livros, basta
uma dose de "Vida Real" (que ele entendia como o ônibus e o jornaleiro gritando)
para persuadi-lo que "Aquilo Tudo" não podia ser verdade de jeito nenhum. A
vítima escapara por um fio, e anos mais tarde, gostava de se referir àquela ocasião
como "senso inarticulado de realidade, que é o último salva-vidas contra as
aberrações da simples lógica". Hoje, ele está seguro, na Casa de Nosso Pai.
Começa a perceber ? Graças a processos que ensinamos em séculos passados, os
homens acham quase impossível crer em realidades que não lhes sejam
familiares, se estão diante de seus olhos fatos mais ordinários. Insista pois em lhe
mostrar o lado comum das coisas. Acima de tudo, não faça qualquer tentativa de
usar a Ciência (digo, a verdadeira) como defesa contra o Cristianismo.
Certamente, as Ciências o encorajariam a pensar em realidades que a visão e o
tato não percebem. Tem havido tristes perdas para nós entre os cientistas da
Física. Se a vítima teimar em mergulhar na Ciência, faça tudo que você puder
para dirigi-la para estudos econômicos e sociais, acima de tudo, não deixe que ela
abandone a indispensável "Vida Real". Mas o ideal é não deixar que leia coisa
alguma de Ciência alguma, e sim lhe dar a idéia de que já sabe de tudo e que tudo
que ele assimila das conversas nas "rodinhas" são resultados das "descobertas
mais recentes". Não se esqueça que sua função é confundir a vítima. Pela maneira
como alguns de vocês, diabos inexperientes falam, poderiam até pensar (que
absurdo!) que nossa função fosse ensinar!

Seu afetuoso tio,
Diabão

Nota explicativa:

Há alguns anos, o conhecido autor evangélico C. S. Lewis, professor da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, escreveu uma série de artigos sob o título: "The Screwtape Letters" , ou seja, "Cartas do Inferno" , Edições Vida Nova SP, e os publicou no jornal "Guardian", conhecido órgão da imprensa britânica, lá pelos idos de 1940. Depois, essas cartas foram reunidas em um livro com o mesmo título, que se tornou a obra mais popular desse eminente escritor de temas cristãos. Nessas cartas, o autor imagina uma série de conselhos que Roldão, experiente oficial da hierarquia diabólica, envia a seu sobrinho Lusbim, um diabo neófito que recebeu a incumbência de corromper a fé de um homem que se tornara cristão. Visto que, daquela época para cá, tem-se multiplicado as artimanhas satânicas, é lícito imaginar mais alguns terríveis conselhos enviados pelo sinistro oficial ao seu infernal emissário, em plena ação diabólica para desviar os fiéis do caminho estreito. Usando os mesmos personagens, apenas mudamos os nomes, e tomando emprestado o gênero literário do autor mencionado, aqui apresentamos aos amados leitores uma nova carta imaginária, vinda dos abismos infernais.



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